Aos 87 anos, Maria* pega seu andador, veste a máscara de pano para proteger-se do coronavírus e deixa a casa que divide com o esposo acamado em Florianópolis.
Apressada por um homem que a segue, a senhora vai até o banco e retira a pequena quantia disponível pela sua aposentadoria. Após enfrentar fila e se expor em tempos de pandemia, as notas sacadas do caixa eletrônico são arrancadas de suas mãos por um dos filhos que a perseguiu no caminho ao banco.
Dependente químico, o filho de Maria agora é investigado pela Dpcami (Delegacia de Proteção à Criança, ao Adolescente, à Mulher e ao Idoso) em Florianópolis. O rapaz está respondendo criminalmente pelo delito de apropriação e desvio de bens contra pessoa idosa previsto no Estatuto do Idoso.
Imagens de câmeras de monitoramento mostram a senhora caminhando até até a agência bancária na companhia hostil do filho.
Durante pandemia, violações colocam população idosa em maior risco – Foto: Pixabay/Divulgação
Apesar de ter sido roubada, Maria não procurou ajuda. Isolada por conta da pandemia, só parou de sofrer os abusos quando outro filho percebeu a situação e denunciou o caso. Ela e o esposo, diagnosticado com Alzheimer, foram acolhidos na casa de familiares.
Em tempos de pandemia, a população acima dos 60 anos tem sido a mais atingida pelo coronavírus. Por isso, órgãos que combatem violações contra idosos chamam a atenção para o silenciamento e isolamento durante a quarentena.
Além da vulnerabilidade por conta do contágio da doença, idosos podem sofrer violência sem que ninguém perceba.
Titular da Dpcami em Florianópolis, o delegado Gustavo Kremer revela que a violência contra a pessoa idosa é mais comum do que se imagina. As denúncias são frequentes.
Na maior parte das vezes, conta o delegado, as violações são praticadas por pessoas próximas. Estudo produzido pelo Ministério Público entre 2011 e 2019 apontou que 80% das violações ocorrem na casa dos idosos e são cometidas por pessoas do seu convívio familiar.
“Os casos são bem tristes, pois são pessoas muito velhinhas, muitas vezes doentes, e que sofrem na mão dos próprios filhos e familiares”, comenta Kremer.
Redução de registros preocupa
Desde que a pandemia chegou a Santa Catarina, as denúncias de violência contra idosos caíram significativamente. A redução dos registros de maus-tratos foi de 50% (de 64 para 32) enquanto que a queda dos registros de lesão corporal dolosa foi de 39% (de 632 para 385).
A reportagem levou em conta o período entre 12 de março e 29 de maio. A comparação foi feita entre 2019 e 2020. Os dados são da Secretaria de Segurança Pública.
Neste mesmo período, a ouvidoria do Ministério Público recebeu outras 68 denúncias de violação contra a população idosa.
Coordenador do Centro de Apoio Operacional dos Direitos Humanos e do Terceiro Setor do Ministério Público, o promotor João Douglas Roberto Martins faz um alerta. Apesar de os registros terem diminuído no período da pandemia, o cuidado precisa ser redobrado.
Mudança de protocolo
A barreira da denúncia imposta pelo isolamento social fez o MP aprimorar o protocolo de atendimento. Os promotores devem monitoram as vítimas e acompanhar a situação das casas de acolhimento e asilos.
Segundo Martins, mesmo fora do contextos da pandemia, os dados divulgados não refletem a realidade. “Com certeza, nós temos uma cifra invisível, que aumentou muito com o isolamento. Não é porque não tem denúncia que não acontece”.
Expectativa de vida
O Dia de Atenção à Violência contra Idosos foi criado pela ONU com o objetivo de publicizar o problema e conscientizar sobre a necessidade do cuidado à população idosa. Levantamento do IBGE comprova que a expectativa de vida tem aumentado nos últimos anos, o que pode aumentar o tempo de cuidado com a pessoa idosa.
A expectativa do cidadão catarinense, por exemplo, é de 79,7 anos, enquanto que a média nacional é de 76,3 anos.
Por essa razão, Martins reforça a necessidade da denúncia. Segundo o Ministério Público, qualquer cidadão que tenha conhecimento de uma violação de direito contra idosos ou se depare com uma situação suspeita pode procurar ajuda.
“As pessoas precisam denunciar. Nós precisamos saber onde as violências ocorrem para agir. Esse é o primeiro passo”, afirma o promotor.
Denúncias podem ser feitas pelo Disque 100, pelo site do MP ou através das polícias Civil e Militar.
*Maria foi um nome fictício escolhido pela reportagem para preservar a identidade da idosa que sofreu violência do filho.
REPORTAGEM CAROLINE BORGES/nd+
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